"[...] Na istrada do disingano/andei de noite e de dia/inludido percurano/aprendê o qui num sabia [...]" (Elomar Figueira Melo. Desafio - Fragmento do quinto canto: Das violas da morte, do Auto da Catingueira)





quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Azenha: As coisas que eu aprendi com um professor em Cambridge

por Luiz Carlos Azenha
Anos 80. Cambridge, Massachusetts. Um glorioso dia de verão no Hemisfério norte. O verão é glorioso, especialmente nas latitudes mais altas. Cada dia é celebrado não apenas pelo ócio das férias escolares, mas pela distância que ainda nos separa dos dias curtos e gelados de janeiro.
A casa de subúrbio é ampla. Somos recebidos por uma secretária. O professor descansa depois do almoço. A enorme biblioteca reflete as prioridades comuns a homens e mulheres da Nova Inglaterra. Meritocracia. Liberalismo. Crença no serviço público.
Quando se diz que é a região da aristocracia dos Estados Unidos, não é no sentido econômico, mas intelectual. Há por aqui muitos filhos ou netos de imigrantes, gente pobre que ascendeu apoiada na ética protestante do “homem que se faz”. Os antepassados foram gente pobre na Irlanda, em Gales, na Escócia ou nos bairros operários de Manchester ou Liverpool.
O homem que vamos entrevistar está definitivamente fora de moda. John Kenneth Galbraith é defensor de um papel vigoroso do estado quando o estado é anunciado, em toda parte, como o grande inimigo. Eleito em 1980, Ronald Reagan está no auge do poder, com sua plataforma de corte de impostos, corte de programas sociais, política externa agressiva e desregulamentação. “Tirar o estado das costas do povo”, dizem os republicanos.
Fiz as perguntas de praxe, sobre atualidades, cumprindo a pauta. Falamos sobre a dívida externa brasileira, que estava no centro de nossas relações com os Estados Unidos, então. No fim, ganho um livre de presente, “O Professor”, um excelente romance escrito por Galbraith e editado em português.
As coisas mais interessantes foram ditas depois da entrevista. Conversamos sobre Nova York, onde eu morava. Regiões inteiras da cidade pareciam, então, terem sido recém-bombardeadas: Bronx, Harlem, bairros mais distantes de Queens e do Brooklyn. Eu jamais esqueci porque foi a primeira vez que ouvi alguém dizer, de forma enfática, o que o professor me disse.
Resumidamente, em outras palavras: “Esta é a primeira geração pós-Segunda Guerra que vai viver pior que os pais. Estamos criando os americanos de segunda classe. Ali, onde o desemprego se encontra com as drogas e a AIDS cruza com as mães adolescentes. Para essas pessoas, no entorno das metrópoles, só os serviços públicos ofereciam uma saída. Difícil, mas possível. Esse caminho vai se fechar”.
Pessimista esse professor, pensei eu, a caminho de Logan. Vivíamos o tempo da exuberância de Wall Street. Os trabalhadores amargavam derrota atrás de derrota, desde que Reagan havia peitado uma greve de controladores de vôo e destruído um dos sindicatos mais poderosos do país. Ser liberal, como Galbraith, era quase um palavrão. “Card-carrying liberal” era um xingamento, liberal de carteirinha, apoiador da ACLU, a American Civil Liberties Union, odiada pelos conservadores.
Aquela conversa com o professor pautou muitas das minhas reportagens subsequentes. Era como se eu e a equipe da TV Manchete visitássemos um universo paralelo, que não aparecia na mídia, não tinha representação política, era atingido de forma desproporcional pelo desemprego e pela criminalidade e encontrava nas igrejas uma de suas únicas formas de amparo e  organização.
Um visionário, o Galbraith. Só não conseguiu prever que os democratas um dia se transformariam em parte do problema, não da solução. Que trabalhistas, socialistas e sociais democratas também se renderiam, em graus distintos, às forças que Reagan desatou. Ou que os efeitos que ele anteviu em Nova York se tornassem parte do cenário também em Paris ou Londres.

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